sábado, 28 de janeiro de 2012

Roleta russa


Assustadora a ideia de sentir o chão sumir debaixo dos pés, de ver o teto desabar sobre a cabeça sem possuir o poder de Atlas para sustentá-lo, enfim, de se misturar a toneladas de escombros. Num piscar de olhos todos os sonhos de vidas entrelaçadas se transformam em poeira e dor. Os nomes não são familiares para milhões de estarrecidos observadores da tragédia pela TV, mas para algumas centenas de amigos e parentes a perda soa inexplicável. Não estamos em guerra nem vivemos sob a ameaça de homens-bomba, mas a irresponsabilidade dos atos pouco cidadãos nos atinge da mesma forma. Uma análise superficial de muitas das rotinas do dia a dia espelha um número absurdo de riscos corridos nas ruas, em automóveis num trânsito de leis desrespeitadas, nos estabelecimentos comerciais, nos escritórios, em nossas próprias residências. Somos reféns de uma sociedade que trasngride regras, de um poder público inoperante para se dizer o mínimo e de iniciativas tão criminosas quanto as dos terroristas. Apenas os motivos são diferentes. Tomando ciência de cada história das vítimas e escutando suas pessoas mais próximas nos invade a angústia do acaso. Apenas por uma questão de sorte não nos enxergamos na mesma situação. Além das balas perdidas e do crime organizado, estamos cercados de bueiros explosivos, de prédios ruindo, de restaurantes implodindo, de rios transbordantes, de encostas desabando. Em alguns bairros a explosão imobiliária sufoca uma infra-estrutura já mais do que precária, sem condições de suportar a progressão descomunal de veículos e de moradores, com um crescimento vertiginoso do uso de esgoto, de água, de luz, da maior demanda por segurança e pelo serviço público em geral. Uma rápida passada pelo bairro da Freguesia/Jacarepaguá/RJ ilustraria melhor essa constatação. Ruas até um ou dois anos ocupadas por algumas casas espaçosas se transformaram nos endereços de dezenas de prédios, a cada dia se descobrindo um novo e grande empreendimento habitacional, numa multiplicação desenfreada. As próprias sobras das construções, indevidamente despejadas em ralos e esgotos, se incumbem de entupir as galerias pluviais, repercutindo nas vias alagadas a qualquer chuva mais forte. Convivemos com a impressão do incontrolável, ficamos acuados diante da volúpia mercadológica. Enquanto isso, prédios desabam no centro da cidade do Rio de Janeiro por conta de obras não vistoriadas, bem ao lado dos políticos. Diriam os mais velhos que temos mais sorte do que juízo, afinal nos resignamos com tudo isso. Apesar de várias balas no tambor, ainda bem que o gatilho da roleta russa tem nos poupado e a nossos entes queridos. Até quando?

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Somos indicados ao Oscar





Não tenho a mínima pretensão, sequer o menor interesse, de tornar esse espaço um cantinho de auto-ajuda, onde as pessoas busquem orientações de como devam viver. Há mais de cinquenta anos tenho encarado o desafio de permanecer vivo, alternando bons e maus momentos, a exemplo de todos os mortais. Como estou longe de me julgar um modelo, desconsidero correr o risco de aconselhar os outros. Cumpro somente a missão de viver o meu papel nesse palco. Dedico meu tempo a fazer um exercício permanente para não deixar a corda esticar, me valendo da experiência adquirida para transitar pelos atalhos descobertos nessa caminhada. Há ocasiões em que, mesmo distante do hemisfério norte, meus dias às vezes se prolongam demais, como se não houvesse noite. Parece acontecer apenas um intervalo, uma pausa para um repouso forçado, intimado pela exaustão do corpo e da mente. Depois acordo por imposição e recomeço tudo de novo. Para minha sorte esses momentos são raros e breves. Em geral saboreio a alegria de estar cercado pela família, de encontrar os amigos, de desanuviar as tensões. As dificuldades não me castigam nem me oneram, se assemelham às sextas-feiras turbulentas, alentadas pelo prenúncio dos sábados e premiadas pela certeza dos domingos. Verdade que esses terminam no surgimento de novas segundas-feiras, quando o filme se reprisa em outras e sucessivas sessões. Se o ingresso está sempre pago, engano a lanterninha do destino do meu jeito. Escolho novas embalagens no baleiro, procuro mudar os sabores e alternar a poltrona. Pequenas alterações disfarçando a repetição cansativa, iludindo a ótica, revelando inéditos pontos de vista. Sigo o caminho através de percursos diferentes, na convicção de que se renasce a cada instante. Quase nem me recordo das matinês dos primeiros domingos do mês, do festival Tom & Jerry, da ansiedade represada em tantas fantasias infantis. Deixei de me restringir às matinês, em sessões multiplicadas, histórias modificadas, personagens substituídos pela realidade dos índios exterminados, dos soldados sacrificados, dos heróis sucumbidos. O enredo da minha infância passou da animação com finais felizes para suspenses e dramas, generosas doses de mistério, alguma comédia, muita expectativa pelo clímax. Ano após ano disputamos estatuetas na premiação da academia de nossa existência cinematográfica. Ela não privilegia diretores ou técnicos de efeitos especiais, dispensa canastrões, aniquila oportunistas. Nesse tempo de indicações ao Oscar da vivência, melhor do que aplaudir, mais do que o papel de meros espectadores, somos atores sempre.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Eles ou as chuvas deverão?


Andei afastado e aproveitei para amolar a faca para não perder o fio. A fé permanece inalterada. O ano já engoliu uma quinzena e o ralo dos nossos dias continua com a goela escancarada, abocanhando torrentes. Enquanto isso, não menos torrencialmente, as novidades do álbum de 2012 se restringem a figurinhas repetidas. Nada mais previsível do que as catástrofes da incompetência remunerada, da desumanidade explícita, da imobilidade corrupta. As chuvas caem e destroçam vidas com a força da rotina, o poder público usa as águas para lavar as mãos como Pilatos. Afoga-se a esperança em dias melhores, arrastando-a pela correnteza em rede nacional. As vítimas mudam de nome, os locais nem sempre. As desculpas e as promessas se revezam nas caras e bocas da hipocrisia. Não me surpreenderia o esclarecimento de que os impostos sobem para fugir do nível da água. Pior, as verbas alocadas para a prevenção percorreram um caminho indevido e repousam nos colchões dos deitados eternamente em berço esplêndido. A mãe natureza cobra um preço antigo e anunciado. A natureza humana também. Ilimitados interesses escusos, escaramuças engendradas em gabinetes, dão vazão a caudalosos rios de lágrimas. Por que beber nessa fonte amaldiçoada, como justificar algum benefício trocado pela desgraça de tantos inocentes? Quantos crimes cometidos com a frieza dos calculistas profissionais, dos burocratas insensíveis, dos comerciantes da miséria alheia?  E nada acontece com eles, ano após ano, gestão após gestão, tragédia após tragédia. O choro anônimo das famílias dilaceradas não os comove. Há um distanciamento protocolar, um semblante impassível para cada morte, uma falta absoluta de consciência. Transfere-se a culpa, altera-se o sentido, deturpa-se o fato. Afinal, todos sabemos da impossibilidade de se prever tamanha concentração pluviométrica. Nessa época, já nos acostumamos com a precipitação esperada em um mês ocorrer em alguns dias. É assim e pronto. O resto faz parte do sensacionalismo da imprensa e da difamação costumeira de gente tão proba. Bem que a justiça divina poderia vitimá-los nesses episódios. A dos homens não me parece atenta aos acontecimentos recorrentes. Nem quando vai às urnas.

P.S.: Hoje faz um ano da perda de um inconformado com essas injustiças cometidas por aqui. Renato, meu inesquecível e querido amigo, tenho certeza de sua campanha contra isso tudo junto à rapaziada daí. Ajude a não deixarmos a peteca cair diante de tanta desilusão. Um grande e saudoso abraço.